Jogo viciado

1

Sen­ta­do à sua mesa, Gui­lher­me mira­va a pági­na vazia na tela do com­pu­ta­dor inco­mo­da­do pela lumi­nes­cên­cia exces­si­va na malha de pixels, cuja bran­cu­ra arden­te dila­ta­va suas pupi­las, irri­tan­do-lhe os olhos e o âni­mo. Pas­se­ou o cur­sor, ora de um can­to a outro da tela, ora em elip­ses. Depois digi­tou um “s” ao aca­so — sem­pre ao aca­so, pen­sou. O “s”, exa­mi­nou deti­da­men­te, era de fato uma letri­nha estra­nha, dife­ren­te das demais; tal­vez lhe fal­tas­se uma linha reta para mai­or har­mo­nia esté­ti­ca ou, então, algum aca­ba­men­to ou supor­te; ela mais pare­cia um cami­nho erran­te, um movi­men­to à toa, uma cobra, uma lom­bri­ga. Enfas­ti­a­do, Gui­lher­me bafe­jou sobre a tela: sonha­va em estar lon­ge dali, em qual­quer lugar onde a luz não lhe vies­se de cho­fre na cara, de uma fon­te liga­da na toma­da, mas, tal­vez, de um ame­no sol ou de um luar. Engra­ça­do, espe­cu­lou, obser­van­do o “x” que acres­cen­ta­ra ao “s”, ser pri­si­o­nei­ro do pró­prio suces­so, como se amar­ra­do a uma cadei­ra e obri­ga­do a tra­ba­lhos for­ça­dos. O pro­ble­ma, a ori­gem de sua escra­vi­dão, fora o triun­fo do pri­mei­ro livro. Caso con­trá­rio, pode­ria mui­to bem ser livre.

Jogo Vici­a­do”, o dito-cujo, o pri­mei­ro livro (ges­ta­do para ocu­par par­te de madru­ga­das inso­nes, abor­ta­do no séti­mo mês, depois impres­so à toa, amas­sa­do e lan­ça­do entre res­tos de comi­da ao ces­to do quin­tal tal qual um feto expe­li­do clan­des­ti­na­men­te, porém res­ga­ta­do por sua mulher da cole­ta de lixo do sába­do e tra­zi­do de vol­ta ao mun­do por tei­mo­sia dela, que no cor­po do reben­to nati­mor­to dizia sen­tir um chei­ro de vida e de pro­mes­sas de um futu­ro melhor, e que, dese­jo­sa por mudar sua vida monó­to­na, tele­fo­na­ra para o irmão jor­na­lis­ta para lhe supli­car que enca­mi­nhas­se o bas­tar­do a um edi­tor) não tive­ra o títu­lo cri­a­do e pen­sa­do — como fazem os gran­des —, mas, sim, recor­ta­do do títu­lo de uma maté­ria de jor­nal, da seção de eco­no­mia, o qual, numa noi­te, às três da madru­ga­da, duran­te uma andan­ça pela lavan­de­ria, do chão cha­ma­ra a aten­ção de Gui­lher­me menos pelo con­teú­do do que pelo chei­ro da nele des­pe­ja­da uri­na de Gre­gor, o vira-lata da famí­lia. E o enre­do do livro — bem —, o enre­do era uma col­cha de reta­lhos de pen­sa­men­tos cin­zen­tos, emen­da­dos pela cola da lom­ba­da do livro. Mas acha­ram que era bom o dito-cujo, aliás, acha­ram que era óti­mo, tan­to o públi­co quan­to a crí­ti­ca. Alguns pro­fes­so­res uni­ver­si­tá­ri­os, então, nem se fale; eles, em bus­ca do mais recen­te lan­ça­men­to que mais uma vez, expon­do a mor­te da tra­ma por ane­mia fal­ci­for­me decor­ren­te do fim de seu ciclo de vida his­tó­ri­co, lhes con­fir­mas­se a tra­di­ção da novi­da­de como ates­ta­do de alto valor lite­rá­rio, debru­ça­vam-se por horas para elen­car as qua­li­da­des das entre­li­nhas, para depois as exi­bi­rem na lou­sa a alu­nos que se ocu­pa­vam mais com o que havia na tela de seus celu­la­res.

E com o suces­so veio o dinhei­ro. Sim, aí esta­va o pro­ble­ma: vári­os dígi­tos, na con­ta ban­cá­ria de Gui­lher­me, ali­nha­dos à direi­ta do pri­mei­ro. Uma bele­za, não? Uma mara­vi­lha, cla­ro, quem há de negar… Então ele lar­ga­ra o empre­go. Por que não? Rece­bia um salá­rio medío­cre, tinha um che­fe obtu­so, dita­to­ri­al e pom­po­so, tra­ba­lha­va numa sala feia, opa­ca, com um ban­do de enge­nhei­ros de cami­se­tas polo lis­tra­das ou cami­sas de botões para pren­der o cola­ri­nho, de brin­ca­dei­ras estú­pi­das de cole­gi­ais e con­ver­sas enfa­do­nha­men­te repe­ti­ti­vas sobre mulhe­res e fute­bol, com momen­tos de sur­pre­en­den­te e ran­ço­so sen­so-comum sobre polí­ti­ca e a vida. Mas o pro­ble­ma aqui — sim, outro pro­ble­ma — era que Gui­lher­me gos­ta­va de enge­nha­ria. Nela tudo dava cer­to, as coi­sas se encai­xa­vam, era só fazer as con­tas para se erguer uma pon­te ou um cas­te­lo; e o resul­ta­do era sem­pre sóli­do. Tal­vez o impul­so der­ra­dei­ro, a for­ça que o lan­ça­ra rumo àque­la cela, fora dado, pou­cos meses depois do lan­ça­men­to do livro, por sua mulher. Ela, encan­ta­da pelo tinir das moe­das, com a lis­ta dos títu­los mais ven­di­dos numa mão, a outra na cin­tu­ra de irre­sis­tí­veis cur­vas e balan­ço, sen­ten­ci­a­ra:

— E quan­do você vai escre­ver o pró­xi­mo?

E assim a cobi­ça se fez pro­fis­são. Escri­tor, ele, Gui­lher­me, o enge­nhei­ro. E ago­ra lá esta­va ele, dian­te de uma pági­na sem ves­tí­gio de fra­se. No pri­mei­ro livro, as pala­vras irrom­pi­am em ban­dos, inva­di­am o ter­ri­tó­rio da folha pelos hori­zon­tes das mar­gens como ani­mais bra­vi­os. A úni­ca coi­sa que cabia a ele era aper­tar as teclas fei­to uma mari­o­ne­te idi­o­ta, bes­ta, daque­las com olhar de psi­co­pa­ta, só para dar o rit­mo para as pas­sa­das dos bichos, que, ani­mo­sos, sobre suas patas de seri­fa, se ajun­ta­vam em fra­ses aos galo­pes. Mas as mana­das tinham-se ido sei lá para onde, e a úni­ca coi­sa que ele, naque­la tar­de, tinha de seu novo fenô­me­no edi­to­ri­al era um “sx”.

Depois de um mês decor­ri­do assim, com todos os dias úteis pre­en­chi­dos por um amar­go vazio lite­rá­rio, sua espo­sa lhe dera uma ideia que na oca­sião lhe pare­ce­ra até que razoá­vel. Ins­pi­ra­do­ra, tal­vez. Segun­da suas pala­vras, pen­du­rar nas pare­des fotos dos gran­des: os mes­tres uni­ver­sais da escri­ta. E Gui­lher­me, mais para ganhar tem­po do que arte, bus­ca­ra na inter­net as ima­gens, as quais impri­miu em folhas A4 para pren­dê-las com fita dupla-face nas pare­des. E assim seu escri­tó­rio, aque­le cár­ce­re úmi­do, virou o simu­la­cro de um quar­to de ado­les­cen­te, com as pare­des toma­das por pôs­te­res que, ao invés de cores e poses sen­su­ais de gen­te boni­ta e des­co­la­da, mos­tra­vam a pali­dez de uns homens estra­nhos, alguns de figu­ra tris­te. Gui­lher­me olha­va para eles, para aque­les homens tão cala­dos, mui­tas vezes aco­me­ti­do por ver­da­dei­ro ódio. Era um ban­do de gen­te esqui­si­ta, quem não sabe? Um deles, o ros­to sob uma bar­ba encar­di­da de pro­fe­ta que lhe che­ga­va ao pei­to, se asse­me­lha­va mais a um lavra­dor velho e sujo. De tão ossu­do, o homem era mais um tra­po em pé, ou um espan­ta­lho bar­bu­do, de bra­ços caí­dos, apoi­an­do-se numa ben­ga­la ou caja­do para não cair; não olha­va para a câme­ra, mas para o lado; pre­fe­ria, absor­to em vai se saber lá o que, ler uma par­te do obs­cu­ro tex­to do mun­do a fim de para­fra­seá-lo em suas obras do que se dei­xar retra­tar decen­te­men­te para a pos­te­ri­da­de. Outro, estra­nhís­si­mo como suas his­tó­ri­as sur­re­ais, tinha, sob as sobran­ce­lhas arque­a­das pelo peso da melan­co­lia, os olhos em desa­li­nho, como se, ao mes­mo tem­po em que um deles admi­ra­va as nuvens, o outro se fixas­se no chão para que ele, sonha­dor, dis­traí­do ao andar, não tro­pe­ças­se. Tinha fama — como mui­tos deles — de bêba­do. Teria mor­ri­do, diz a len­da, na sar­je­ta, como um cão de rua enve­ne­na­do, ago­ni­zan­te, sem lem­brar nem ao menos o pró­prio nome. Tam­bém havia um mais pom­po­so, de ter­no vin­ca­do, bigo­de e sobran­ce­lhas pen­te­a­dos fio a fio ao esti­lo de um galã anti­go de Hollywo­od, tal­vez tími­do, e por isso fla­gra­do sério fei­to um boi com dor de den­te. Era um que muda­ra a lite­ra­tu­ra enquan­to des­pe­ja­va um bafo amar­go e aze­do de uís­que e fumo sobre a máqui­na de escre­ver. E havia um de peru­ca, uma cabe­lei­ra de cachos tal qual ondas sobre o ros­to empo­a­do e com olhos doces de cri­an­ça mima­da, e que, por guar­dar ain­da con­si­go um tan­to do bri­lho de seus olhos de bebê chei­ran­do a lavan­da, pre­fe­ris­se falar sobre tole­rân­cia e amor. Todos eles, sem dúvi­da, gen­te esqui­si­ta. Mas ao menos não eram, como era Gui­lher­me, mari­o­ne­tes, escre­vi­nha­do­res do aca­so. Eles sabi­am o que fazer.

Porém Gui­lher­me, cer­ca­do des­ses e outros fan­tas­mas, que viam nele um canas­trão mas não o dizen­do por pie­da­de e, quem sabe, um pou­co de espe­ran­ça, per­sis­tiu. Afi­nal as coi­sas em casa esta­vam fican­do um pou­co para lá de estra­nhas; ele pre­ci­sa­va se mexer. Os gas­tos domés­ti­cos tinham aumen­ta­do na pro­por­ção dire­ta do suces­so. Casa nova em bair­ro arbo­ri­za­do, car­ro de coman­dos com­pu­ta­do­ri­za­dos, as cri­an­ças com as per­nas super­nu­tri­das enfi­a­das em cal­ças de teci­do e cor­te impor­ta­dos, a mulher com bri­lhos de ver­da­de nas ore­lhas. Havia tam­bém jan­ta­res com gen­te per­fu­ma­da, de fotos no jor­nal, de fala macia. E, além de tudo, o pior, os dis­pen­di­o­sos e arras­ta­dos saraus. Sim, os saraus, o ápi­ce a que a huma­ni­da­de che­ga­ra gal­gan­do sua esca­la rumo à cha­ti­ce supre­ma. A afe­ta­ção cus­ta­va caro, rumi­na­va Gui­lher­me.

Então num dia ele man­dou tudo à mer­da.

— Que tudo vá à mer­da — dis­se ele para os fan­tas­mas da pare­de.

E sen­tou-se na sua cadei­ra ergonô­mi­ca e tomou em seu poder o mou­se a laser de toque ave­lu­da­do. Apa­gou o “sx” pelo tecla­do sem fio. E pas­sou a aper­tar com­pul­si­va­men­te as teclas. A ques­tão, pen­sou, era o rit­mo dos tlec-tlecs. Isso era o impor­tan­te. E o rit­mo pros­se­guiu hora após hora, dia após dia, mês após mês, e, ao fim de um ano e pou­co, após con­tem­plar por uma hora na tela do com­pu­ta­dor as mini­a­tu­ras das pági­nas de sua obra fina­li­za­da, ago­ra com tam­bém melo­dia, har­mo­nia e arran­jo, empur­ran­do a por­ta de seu escon­de­ri­jo úmi­do fei­to alguém que empur­ra outro alguém bar­ran­co abai­xo, Gui­lher­me saiu ao cor­re­dor e avi­sou a empre­ga­da que esta­va ter­mi­na­do. Ela, coi­ta­da, os joe­lhos nus se esfo­lan­do no car­pe­te, um pano na mão, outro no ombro, olhou-o por cima das len­tes dos ócu­los:

— Aca­bou o que, seu Gui­lher­me?

— Oras — dis­se ele —, aca­bou o infer­no!

— Que bom! — dis­se ela. (A empre­ga­da, aqui rapi­di­nho dá tem­po de dizer, era uma domés­ti­ca far­san­te, pois era uma apai­xo­na­da estu­dan­te de lite­ra­tu­ra e fã de Gui­lher­me, tra­ves­ti­da de dia­ris­ta só para ficar per­to de seu ído­lo, aque­le homem asser­ti­vo, futu­ro monu­men­to das letras, um talen­to que, por sua entre­ga total à arte, se tran­ca­va num peque­no cômo­do com Tols­tói, Edgar Allan Poe, Faulk­ner, Vol­tai­re e outros.) — Fan­tás­ti­co, seu Gui­lher­me! — acres­cen­tou ela, dedu­zin­do, com sen­si­bi­li­da­de artís­ti­ca não sem admi­ra­ção e inve­ja, e, cla­ro, um tan­to de bis­bi­lho­ti­ce, o moti­vo da ale­gria.

O novo livro, lan­ça­do três meses depois em even­to are­ja­do pelo ar con­di­ci­o­na­do da livra­ria de finos car­pe­te e reves­ti­men­tos, com con­vi­da­dos, curi­o­sos e jor­na­lis­tas com taça de cham­pa­nhe autên­ti­co ou copo de uís­que sin­gle malt na mão, subiu às altu­ras das lis­tas dos mais ven­di­dos na pri­mei­ra sema­na, fato ilus­tra­do em jor­nais e revis­tas, e até, quem diria — por se tra­tar de lite­ra­tu­ra —, na tele­vi­são. Des­ta vez os elo­gi­os dos espe­ci­a­lis­tas à escri­ta de Gui­lher­me se tor­na­ram um tan­to mais com­ple­xos, ela­bo­ra­dos em fra­ses eru­di­tas com mais pala­vras; e o públi­co, mes­mo que um pou­co reti­cen­te dian­te do tex­to obs­cu­ro da con­tra­ca­pa e das ore­lhas, não rece­a­va, dian­te do reco­nhe­ci­do nome em letras robus­tas na capa, em adqui­rir seu exem­plar para lê-lo, sim, com pra­zer, e des­fi­lar com ele na rua, nos ôni­bus, no metrô. Gui­lher­me, então, podia-se dizer, esta­va qua­se feliz:

— Cace­te — dis­se ele (sob a bri­sa de uma tar­de ame­na, em seu jar­dim de inver­no, de sua cadei­ra em cou­ro tran­ça­do, um jor­nal aber­to sobre o colo) para e empre­ga­da far­san­te, a qual car­re­ga­va com as cos­tas tor­tas um bal­de pesa­do, cheio de água com sabão, em dire­ção ao quin­tal, con­for­me as ordens que lhe eram dita­das às pres­sas pela mulher de Gui­lher­me antes de par­tir rumo ao shop­ping.

— Meu que­ri­do — con­cluía ela, cha­ves do car­ro à mão, jogan­do um bei­jo no ar ao sair, — te amo.

No cader­no cul­tu­ral do jor­nal, lia Gui­lher­me, abai­xo de sua foto na pri­mei­ra pági­na, elo­gi­os de um dou­tor em letras e filo­so­fia. O aca­dê­mi­co — homem dedi­ca­do à cau­sa da arte escri­ta, poe­ta nas horas vagas, acu­sa­do por alguns detra­to­res lite­ra­tos de ser um pla­gi­a­dor — afir­ma­va com hones­ti­da­de em seu tex­to estar somen­te resu­min­do o que cor­ria pelos cor­re­do­res das melho­res uni­ver­si­da­des do país. Que a nova obra-pri­ma de Gui­lher­me era um ganho incon­tes­ta­vel­men­te de efi­cá­cia empí­ri­ca, sem uma sequer pro­po­si­ção a pri­o­ri, para toda ampli­tu­de semân­ti­ca e exis­ten­ci­al da huma­ni­da­de. Pois Gui­lher­me, com sua deter­mi­na­ção para ir além, che­ga­va com por­ten­to­sas pas­sa­das aos limi­tes da lin­gua­gem e, rebel­de e impe­tu­o­so que era, com punhos for­tes, pre­ci­sos e ao mes­mo tem­po sutis de mes­tre, esmur­ra­va com pai­xão as pare­des de nos­so mun­do de repre­sen­ta­ção raci­o­nal, abrin­do nelas racha­du­ras pelas quais nós, seres depen­den­tes das pala­vras, vis­lum­brá­va­mos um novo mun­do de pos­si­bi­li­da­des lin­guís­ti­cas, um novo mun­do a ser explo­ra­do, um uni­ver­so iné­di­to de sig­ni­fi­ca­ções e via­bi­li­da­des de exis­tên­cia, como um cami­nho de con­ta­to mes­mo para uma lin­gua­gem além da atu­al. Enfim, con­cluía ele, Gui­lher­me aumen­ta­va o tama­nho do mun­do.

O novo livro não iria ven­der tan­to quan­to o pri­mei­ro. Os dígi­tos na con­ta ban­cá­ria de Gui­lher­me se enfi­lei­ra­vam ago­ra não mais com o mes­mo ímpe­to de sua estreia, mas ain­da assim com deter­mi­na­ção. Ele tirou féri­as a fim de via­jar pelo mun­do com a mulher e os dois filhos meno­res; o mais velho, sedu­zi­do pela car­rei­ra artís­ti­ca, mon­ta­ra uma ban­da de rock e excur­si­o­na­va por cida­des do inte­ri­or.

Gui­lher­me, nos anos seguin­tes, lan­çou mais três livros. Todos com boa, embo­ra decres­cen­te, ven­da­gem, reco­nhe­ci­dos e comen­ta­dos. O pro­ces­so de cri­a­ção fora sem­pre o mes­mo. Ele recla­ma­va, xin­ga­va, se lamen­ta­va em sua pri­são fan­tas­ma­gó­ri­ca. Che­ga­ra até, cer­ta tar­de, a ati­rar o tecla­do con­tra a jane­la, assus­tan­do a todos com o baru­lho do vidro se esti­lha­çan­do. Com ódio, voci­fe­ra­va con­tra as letras e as pala­vras, mal­di­tos sejam, seres capri­cho­sos e de vida pró­pria, bichos esqui­si­tos que tei­mam em tomar a pági­na como e quan­do que­rem. Algum dia, matu­ta­va ele às vezes na cama, entre nar­ra­ti­vas que remoía antes de dor­mir, teria con­tro­le da coi­sa toda, seria senhor de suas pró­pri­as pala­vras, como são os mes­tres.

Se a arte de Gui­lher­me vai sobre­vi­ver ao cri­vo do tem­po, não sabe­mos. Mui­tos acre­di­tam que ele seja, sim, um dos gran­des. Ques­tão que só a pos­te­ri­da­de tra­rá res­pos­ta.

Assim aqui aban­do­na­mos a his­tó­ria de Gui­lher­me. Eu, de fato, quan­do a come­cei, tinha outra ideia: con­tar sobre um homem, tam­bém escri­tor, que cri­a­ria uma tra­ma na qual os acon­te­ci­men­tos, uma vez des­cri­tos, ocor­res­sem nos dias seguin­tes na vida real, como se fos­sem pre­mo­ni­ções invo­lun­tá­ri­as. Uma ideia esco­lhi­da na fal­ta de outra melhor, e já repe­ti­da na lite­ra­tu­ra fan­tás­ti­ca, na tele­vi­são e, acre­di­to, no cine­ma. Um cli­chê, na ver­da­de. Coi­sa bati­da. Por isso estou con­ten­te por — ape­sar de tudo, de minhas frus­tra­das inten­ções de iní­cio — esta his­tó­ria aqui inven­ta­da me pare­cer melhor que aque­la; ambas, quem sabe, fru­tos do aca­so, sem­pre do aca­so, coi­sa de que nos lem­bra­ria Gui­lher­me (socan­do seu tecla­do ou de féri­as numa sua­ve e deli­ca­da praia estran­gei­ra).

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